26 de jun. de 2008

A pseudociência da Homeopatia

Christian Friedrich Samuel Hahnemann (1755-1843), o criador da doutrina homeopática, foi um grande médico. Quando começou a formular os princípios da homeopatia (do grego homeo, semelhante, e pathos, sofrimento ou doença), em fins do século 18, o horror que nutria pela medicina tradicional de seu tempo era justificado. Entre os recursos médicos da época contavam-se a aplicação de sanguessugas, os enteroclismas (lavagens intestinais), as sangrias, a administração maciça de drogas perigosas e outros métodos invasivos que geralmente faziam mais mal do que bem. Hipócrates foi a inspiração de Hahnemann para a lei dos semelhantes.


Disse ele: "Há doenças que são tratadas pelo similar, outras pelo contrário. Tudo depende da natureza da doença". A noção de que a maioria das doenças pode ser curada pelos mesmos agentes que a causam também é encontrada na medicina chinesa. Se a cura do semelhante pelo semelhante prenunciava-se em Hipócrates, em Paracelso ela era explícita. Foi ele o autor da frase similia similibus curantur, erroneamente atribuída a Hahnemann. Como Hahnemann conhecia perfeitamente o latim e o grego antigo, podemos crer que bebeu de primeira mão dessas fontes clássicas, embora haja quem discorde.


Partindo de observações feitas a partir do uso do extrato de quinino, que, usado em pessoas sadias, parecia produzir os mesmos sintomas da doença que era usado para tratar a malária – chamada então de febre dos pântanos –, Hahnemann formulou o primeiro axioma da homeopatia, conhecido como Lei dos Semelhantes. Outros dois axiomas da homeopatia são a Lei do Remédio Único, que estabelece que o remédio mais eficaz é a substância pura que produza os mesmos efeitos da doença a combater, aplicada em dose única; e a Lei da Dose Mínima, ou dos Infinitesimais, que diz respeito à diluição do princípio ativo, o famoso e controverso princípio do "quanto mais diluído mais forte".

Dinamização?


A diluição, chamada em homeopatia de potencialização ou dinamização envolve uma seqüência progressiva de diluição e agitação rítmica, a chamada sucussão. A primeira diluição é obtida adicionando-se uma parte do princípio ativo a nove partes de solvente, geralmente água ou álcool. Faz-se em seguida a sucussão percutindo-se ritmicamente o frasco com a solução contra um anteparo, geralmente uma tira de couro. A potência da solução obtida é de 1DH na escala decimal hahnemanniana, ou seja, uma parte em dez. Para obter-se a potência 2DH, no mesmo sistema decimal, mistura-se uma parte da solução anterior em nove de água, o que resulta em solução com uma parte de soluto em 100 (1 seguido de dois zeros) de solvente. Similarmente, obtém-se as potências seguintes, de 3DH até diluições extremas como 30DH, ou seja, 1/10^30, uma parte de soluto em volume de solvente representado pelo número um seguido de trinta zeros.


Embora as diluições mais usadas estejam entre 6DH e 30DH, a coisa não pára por aí – há diluições ainda maiores. Além da escala decimal, representada por DH, existem outras. A escala centesimal hahnemanniana, por exemplo, representada por CH, é bastante usada. Na escala centesimal, uma solução 1CH é 1/100, 2CH é 1/10.000, 3CH é 1/1.000.000, e assim por diante. São comercializados remédios homeopáticos que vão até 200CH, ou 1/100^200. Diluições tão altas escapam à compreensão, por não terem paralelo em nossa experiência comum. Os exemplos das seções seguintes talvez ajudem e surpreendam.

Hahnemann e Avogadro


Hahnemann foi contemporâneo de Amadeo Avogadro (1776-1856) mas certamente não conheceu o trabalho do grande químico e físico italiano. O Organon foi publicado um ano antes da formulação da hipótese de Avogadro; muitos anos antes, portanto, da determinação do número que veio a ser conhecido por Constante de Avogadro. Avogadro descobriu que o número de átomos ou moléculas em um mol de uma substância qualquer é constante. Esse número – determinou-se mais tarde – é igual a 6,022137 x 10^23. Um mol, ou molécula-grama, é o equivalente em gramas da massa molecular da substância. A massa molecular da água, por exemplo, é 18, pois a molécula da água, H2O, contém dois átomos de hidrogênio, de massa atômica 1, e um átomo de oxigênio, de massa atômica 16. Assim, há exatamente 6,022137 x 10^23 moléculas em 18 gramas de água.


As leis da química permitem determinar a solução mais diluída que pode ser preparada sem a eliminação completa da substância original. Estatisticamente, só é garantida a presença de pelo menos uma molécula do princípio ativo em soluções mais concentradas do que uma parte de soluto por volume equivalente à constante de Avogadro de partes de solvente, ou seja, 1 parte de soluto por 6,022137 x 10^23 partes de solvente. Isso quer dizer que a partir das potências homeopáticas 24DH ou 12CH, ou 1 parte em 10^24, a chance de existir uma única molécula do princípio ativo no medicamento é quase nula, e diminui ainda mais com a elevação da potência.

O rio


O Amazonas, maior rio do mundo, por onde passa um quinto de toda a água da superfície do planeta, descarrega no mar cerca de 175 mil metros cúbicos de água por segundo. O volume é tanto que a 150 km de sua foz as águas do mar ainda são menos salgadas devido ao enorme volume de água despejado pelo rio. Fazendo as contas, verificaremos que a vazão do Amazonas é igual a 1,75 x 10^11 centímetros cúbicos por segundo. Um centímetro cúbico de água contém aproximadamente quinze gotas; a vazão em gotas por segundo é, portanto, de 2,63 x 10^12. Na diluição homeopática 30DH, uma parte de princípio ativo – digamos, uma gota – é diluída em 1.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000 gotas de água. Para despejar essa quantidade de gotas, o Amazonas levaria cerca de 3,81 x 10^17 segundos, ou seja, 12.079.920.756 anos.

Imagine que fosse possível arranjar um meio de conter toda essa água, que é equivalente a milhares de vezes o volume de todos os oceanos da Terra. Para chegar à diluição 30DH seria só pegar um conta-gotas, ir até a foz do Rio Amazonas, no Pará, pingar uma gota de princípio ativo no rio e aguardar pouco mais de 12 bilhões de anos até a diluição final. E esperar que a pororoca se encarregue da sucussão.

O pato


Se o leitor ficou surpreso com o cálculo acima, apresento outro ainda mais surpreendente, este de Robert L. Park, físico da Universidade de Maryland, nos EUA. Um produto chamado Oscillococcinum, produzido a partir de fígado e coração de pato, é comercializado na potência 200CH. Se uma única molécula da substância original pudesse estar presente no produto final, sua diluição seria de 1 por 1 seguido de quatrocentos zeros – um número maior do que o número estimado de átomos em todo o universo conhecido, que não é mais do que um mísero googol, ou seja, 1 seguido de apenas 100 zeros. O Oscillococcinum é vendido como tratamento para os sintomas de gripes e resfriados. A revista americana U.S. News & World Report (17/2/97) observou que um único pato seria suficiente para fabricar o estoque anual do produto [o fígado de apenas um pato poderia, na verdade, servir para fabricar todo o estoque do produto até o fim dos tempos], cuja venda total foi de 20 milhões de dólares em 1996. Como se vê, a popularização do uso do Oscillococcinum não chega a ameaçar os patos de extinção.


Os remédios homeopáticos para uso interno são ingeridos na fórmula de glóbulos, tabletes, pó ou diretamente na forma de solução hidroalcóolica ou aquosa. As formas sólidas – glóbulos, tabletes e pós – são fabricadas pingando-se uma gota da solução diluída sobre um veículo inerte, geralmente sacarose ou lactose. Park calculou que, para ter certeza de ter ingerido uma única molécula da substância medicinal presente na potência 30DH, seria necessário ingerir dois bilhões de tabletes, cerca de mil toneladas de lactose mais as impurezas que a lactose porventura contenha.


Os fatos apontados acima são entendidos e aceitos pelos homeopatas. O próprio Hahnemann percebeu que provavelmente nenhuma molécula da substância original restaria após essas diluições extremas – as chamadas diluições ultramoleculares. Hahnemann acreditava, no entanto, que a ação vigorosa da sucussão deixa no solvente uma "essência espiritual imperceptível aos sentidos" que estimularia as "energias vitais" do corpo. Se hoje esse tipo de linguagem soa pouco científica, no tempo de Hahnemann ela podia-se justificar. Basta lembrar que seus colegas de profissão ainda falavam em extrair o sangue mau e balancear humores.